Eurythmía e expressão artística
Entrevista concedida por Margrethe Skou Larsen
a Mariane Sobrosa Ramos
O material aqui exposto é parte integrante de um trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2005, que se intitula
POR UM TEATRO EM FLUXO: uma prática em busca de eurythmia, cuja autora, Mariane Sobrosa Ramos, é professora graduanda em Educação Artística Habilitação Artes Cênicas.
Entrevista concedida em 22 e 29 de julho e 05 e 13 de agosto de 2005 e, posteriormente, revisada pela entrevistada.
Margrethe Skou Larsen estudou Antroposofia, formou-se em euritmia e trabalhou como professora Waldorf na Alemanha e nos E.U.A. Vive em Porto Alegre desde 2000 onde criou o Espaço Vivo, um espaço artístico para conhecer e estudar Antroposofia através de vivências .
— O que é Arte do Movimento Euritmia? Como ela originou-se?
A euritmia tem duas faces. Uma é a expressão da fala, da qualidade dos sons. A outra é a expressão da música, da qualidade dos tons, dos elementos musicais.
A expressão da fala chama-se Fala Visível. Isso para o brasileiro é fácil de entender, porque todos os povos latinos, inclusive o brasileiro, usam os braços e as mãos quando falam. Assim a gente enfatiza o que quer dizer. Então isso é uma tendência natural do ser humano. Na euritmia “fechamos a boca” e falamos só com os gestos. Mas para fazer isto precisamos primeiro investigar cada som. Cada som tem sua natureza própria, sua qualidade específica. Os povos antigos, o povo hebreu ou o povo grego, por exemplo, há 2000 anos atrás, sabiam disso. Cada som do alfabeto grego tem um nome: a, b, g, d ... Alpha, Beta, Gamma, Delta etc. Cada som representa um ser com certas qualidades. Baseado nesta sabedoria foi escrito: “No início era o verbo.” E o mundo foi criado através dessas qualidades dos sons.
São duas famílias basicamente: as vogais e as consoantes. As vogais, como diz o nome (vem de vox = latim: voz), tem voz própria, soam. As consoantes, como diz o nome, com-soam: soam com, envolvem a vogal como um vestido. Isto a euritmia como arte explora, essas diversas qualidades. Surge uma ordem de consoantes: doze grupos de consoantes – o zodíaco! As forças do zodíaco têm a ver com estas qualidades criadoras dos sons. E são estas qualidades, estas forças que criam o mundo! Então esta frase: “No início era o verbo.” – isto não é simplesmente uma frase poética, bonita de se ouvir. É algo que podemos investigar, podemos chegar na essência e ver que isto é bem real. Isto acontece.
Neste sentido pode-se dizer que a euritmia como arte é avançada, porque ela mostra uma realidade onde a atual ciência reducionista recém está chegando: a realidade interconectada e suas forças criadoras. Mostra que a criação, o mundo em que vivemos é, na realidade, uma grande obra de arte. A Antroposofia como ciência integrada, há cem anos atrás, já trilhou este caminho. Hoje a ciência convencional está aos poucos tendo estes insights. E daqui há pouco - quem sabe?! - vai haver um diálogo bem interessante entre as diferentes disciplinas... Aí vai surgir uma ciência muito mais rica do que esta que temos hoje em dia – uma ciência transdisciplinar. A Ciência Antroposófica é transdisciplinar desde 1893.
A euritmia expressa isto no palco, torna visível, no sentido daquilo que Paul Klee, o famoso pintor suíço, disse: “A arte torna visível”. Ela não reproduz aquilo que a gente vê, ela torna visível aquilo que é inerente às coisas, porém invisível sem a obra de arte. Em outras palavras: a essência se torna visível através da obra de arte.
Foi nesta época, em 1912 na Alemanha, que a euritmia nasceu, naquela atmosfera que estava fervilhando com idéias novas em busca da relação do ser humano com o todo. Surgiu “Der Blaue Reiter” – o cavaleiro azul em Munique. Pintores como Paul Klee, Franz Marc, Vassily Kandinsky buscavam expressar isto na pintura: a relação do ser humano com o universo, a relação do microcosmo com o macrocosmo. A música de Arnold Schönberg se movimentava em direção à realidade espiritual de uma maneira nova. Isto só para dar alguns exemplos.
Nesta época uma moça queria ser dançarina. Sua mãe, que conhecia Rudolf Steiner , perguntou a ele se sua filha poderia estudar Mensendiek´sche Gymnastik (ginástica Mensendiek), uma linha nova de dança. Ele respondeu que sim, que isto era uma coisa interessante, mas que também poderia ser criada uma dança que expressasse a realidade dos astros: a relação viva do ser humano com o universo. Foi aí que nasceu a euritmia, e com ela a antiga dança dos templos renasceu.
— A euritmia tem a ver com a cultura grega?
Sim, Rudolf Steiner escreveu obras sobre o pensar Platônico e o pensar Aristotélico. Mas sobre isto não posso falar, pois ainda não estudei o suficiente. A euritmia tem sim grande ligação com a cultura dos gregos antigos. Por exemplo, a primeira indicação para a moça que queria ser dançarina, o nome dela era Lory Maier Smits, era olhar as obras gregas, os relevos, observar bem os vestuários dos gregos e observar o jeito como eles se movimentavam, na realidade, flutuando. Aquelas roupas que envolvem os movimentos dos membros parecem água. Tem algo da qualidade da água nesses movimentos. A euritmia tem muito a ver com aquele espírito dos gregos antigos, inclusive o nome eurythmía vem do grego e quer dizer ritmo harmonioso, ritmo belo, ritmo saudável. Isto já existia como uma disciplina na educação da cultura grega: o movimento belo, nobre como expressão de uma vida interior bela e nobre.
A euritmia do século XX ressuscita a dança dos templos, que era algo sagrado: dança sagrada. O ser humano mostrava quem ele é em relação ao divino. No tempo dos gregos tinha o elemento Dionísio e o elemento Apolíneo. Dionisos é o deus que tem a ver com a paixão, com as emoções interiores, com a expressão interior. Apolon tem a ver com as leis divinas, com tudo que é harmonioso. Eles são representados, na cultura grega, por dois instrumentos. O Apolo tem uma lira, que é um tipo de harpa que dá um som harmonioso e bonito. O Dionisos tem um instrumento tipo um oboé que soa assim: ueeeee! É um som forte que vem lá de dentro, com pressão – o som da paixão. A euritmia busca o equilíbrio entre o deus interior, apaixonado, e o deus exterior, harmonioso. A gente poderia dizer que ela traz o equilíbrio. Esta busca pelo equilíbrio vem do tempo dos gregos.
Mas se a gente olha para trás e estuda outras culturas, vê que nos templos as pessoas sempre dançavam. E a dança era algo sagrado. A dança era sagrada ainda no início do cristianismo. Isto vai mais ou menos até 800 d.C., quando a dança dentro da igreja foi proibida e teve que se mudar para o espaço na frente da igreja. Surgiram então os “Dramas de Mistérios” (Mysterienspiele, em alemão) que eram tipo peças de teatro com conteúdo espiritual, religioso. Eram celebrados na frente da igreja. Com o tempo, a dança se tornou profana. Surgiu a dança da corte, para os aristocratas, e a dança do povo, a dança popular. E a dança que temos hoje em dia é simplesmente expressão de emoções pessoais. Isto é, em termos de história da humanidade, uma coisa bem nova. A ligação milenar com o divino se perde na expressão da dança. Nos tempos antigos a dança era algo sagrado, e a pessoa tinha que ser iniciada para receber a permissão de dançar. No tempo do materialismo o sagrado na dança morreu. E a euritmia, como arte de movimento, ressuscita o sagrado da dança.
Existe também a Arte da Fala, que faz parte de uma apresentação de euritmia. A Arte da Fala tem algo em comum com o coro no teatro grego. Só que aí os atores se movimentavam e falavam. Na euritmia quem faz os movimentos “fecha a boca” para deixar só o corpo falar, e outra pessoa, que se especializou na Arte da Fala, fala artisticamente: declama ou recita – conforme o tipo de poesia ou texto – e o euritmista no palco torna isto visível. O artista da fala produz o som, e o euritmista demonstra a qualidade destes sons através do movimento. Imagine, por exemplo, a “Divina Comédia” de Dante apresentada assim: muitos euritmistas no palco representando os personagens e, do lado do palco, vários artistas da fala declamando. Aí a euritmia é parecida com o teatro, só que o som audível é revelado pelo artista da fala, e o som visível revelado pelo artista do movimento.
A outra face da euritmia é o Canto Visível ou a Música Visível, onde a gente dança todos os aspectos da música. Isso é outra coisa interessante, este fenômeno que a dança com o tempo passou a movimentar apenas o compasso. Se a gente dança, danças de salão por exemplo, é 1-2-3, 1-2-3, ... a valsa, ou 1-2. 1-2, ... aí é outro tipo de dança, Fox Trot, etc. Mas é basicamente só o compasso o que se dança na dança de salão. De outro lado, no palco a dança passou a ser simplesmente expressão de emoções pessoais do dançarino, e a música acompanha isto. São duas coisas separadas. Isto também pode ser muito bonito: vivenciar duas coisas separadas, uma ao lado da outra... A euritmia junta as duas! Como euritmista tenho que estudar a partitura, como um músico, mas não só entender toda a teoria de música, e poder reconhecer as leis da composição, mas tenho que estudar a partitura na expressão corporal. Então, se vou estudar uma peça, uma sonata de Mozart, por exemplo, tenho que aprender o compasso, tenho que aprender a fazer, expressar o compasso. Tenho que aprender a fazer, expressar o ritmo também. Isto quer dizer expressar todos os tons que escuto. Depois tenho que estudar e expressar a harmonia, depois a melodia. Depois de expressar estes quatro elementos separadamente, vou ver qual é a ênfase nesta peça, qual é o elemento mais forte, mais importante: compasso, ritmo, harmonia ou melodia? Vou pesquisar isto junto com o músico. Na “Marcha Fúnebre” op. 35 de Chopin, por exemplo, o euritmista vai mostrar o compasso nas partes onde ele é o elemento mais forte. Toda expressão do euritmista vai se tornar compasso, vai se tornar compasso-morte. Na parte lírica, onde a melodia é o mais importante, o euritmista vai expressar a melodia principalmente; porém, os outros elementos vão sempre estar presentes como um pano de fundo, assim como o pianista também toca todos os elementos. Junto com o músico então se cria a coreografia conforme a identidade da peça, num diálogo artístico e vivo. Ambos os artistas precisam desenvolver a sensibilidade para perceber o essencial, e habilidade para expressá-lo, torná-lo audível (o músico) e visível (o euritmista). Isto é arte! Quer dizer, envolve muito trabalho, disciplina para conquistar a expressão adequada. Como euritmista tenho que conhecer a peça muito bem, pois na expressão quero ser a peça!
Os tons nós tornamos visíveis através de vínculos dos braços, os intervalos entre os tons através do movimento dos ossos. A transição de um tom para o outro é o principal: como eu chego lá. Euritmia é movimento, processo constante, transição de uma expressão para a outra. E os vínculos dos tons devem ser exatos. Contam que, num ensaio, Rudolf Steiner, que era clarividente, colocou as mãos nos ouvidos e exclamou: “está tudo desafinado!”.
— Ou seja, os movimentos não estavam nos vínculos certos com relação à música?
Isto, as euritmistas estavam desafinadas. E para acertar você tem que ser boa. A euritmia é como música de câmara. Quando você toca junto com outros músicos (eu tocava violino) você tem que se afinar com eles. Isto precisa ser praticado. Isto a gente ouve. Toda hora você precisa afinar a entonação. Na euritmia você tem que fazer a mesma coisa. Você tem que tocar junto com o pianista, só que você “toca no visível”, via movimento.
Como euritmista eu me torno a peça. Se sei fazer isto bem, o público vai ouvir e ao mesmo tempo ver a peça musical. Se o público não sente essa junção do euritmista com a peça, fica visível que o euritmista ainda não está pronto, precisa praticar mais! Quando estou percebendo mais o euritmista do que a peça é porque ele ainda está lutando com o material. E no caso o material é o próprio ser humano. O euritmista tem que saber manobrar o corpo como um escultor sabe manobrar a pedra. A gente também diz que a euritmia é uma escultura em movimento. É uma escultura viva. O euritmista precisa aprender a se tornar uma escultura viva. Isto vale mais para a Fala Visível do que para o Canto Visível. O Canto Visível é mais fluido em comparação. A gente percebe a diferença entre a fala e a música. Mas se percebe também a diferença entre as diversas línguas. Têm línguas que são mais fluidas, musicais, outras mais plásticas. Uma euritmia em francês, por exemplo, é completamente diferente de uma euritmia alemã ou euritmia russa. Cada língua revela a alma do seu povo. E a euritmia serve também para que possamos despertar para aquilo que observamos como as qualidades diferentes dos povos. Estas qualidades são muito importantes. A euritmia como arte é anti-McDonald´s! Porque a mentalidade McDonald´s quer deixar tudo igual no mundo inteiro. Aí é que vai ser um grande tédio! O interessante são os povos diferentes, com suas línguas diferentes, culturas diferentes, hábitos diferentes, comidas diferentes, etc. Isto torna a vida interessante: a diversidade!
— Rudolf Steiner era um dançarino?
Não. É interessante estudar a vida de Rudolf Steiner. Num site americano ele é introduzido assim: se Rudolf Steiner tivesse sido um grande cientista ou um grande arquiteto ou um grande pedagogo ou um grande médico ou um grande filósofo ou um grande escritor, etc., ele com certeza já teria entrado nas enciclopédias como os grandes e famosos do século XX. Mas porque ele não consta lá? Porque ele foi tudo isto ao mesmo tempo! Ele não era “ou”, ele era “e”. Assustador, não é? Como uma pessoa pode ser universal assim, ainda por cima num mundo já direcionado completamente para a especialização? E Rudolf Steiner não era amador nestas áreas. Há alguns séculos atrás, teria queimado na fogueira, com certeza. No século XX, como as fogueiras não estavam mais na moda, foi simplesmente ignorado pelo mundo acadêmico...
Mas mesmo assim os fatos não se desfazem.
Dizem que ele tinha um jeito muito bonito de se movimentar. Ele era muito elegante, mas elegante como expressão que vem de dentro. Não era aquela elegância que vem de fora, conforme a etiqueta. Como ele era um ser humano muito evoluído, qualquer gesto que ele fazia era bonito. E ele também era uma pessoa humilde. Ele foi dando as indicações para esta menina de 17 anos, Lory, e ela, junto com as suas amigas, praticava o que tinha recebido, na sala da casa dos seus pais. Isto foi em Düsseldorf, na Alemanha. Depois de meio ano, mais ou menos, Rudolf Steiner olhava o que elas tinham praticado e fazia as correções, conforme o que observava: o que tinha dado certo, na prática, e o que teria que ser modificado.
Rudolf Steiner era casado com uma artista de palco, Marie Steiner von Sivers, uma aristocrata russa que se formou em Arte da Fala em Paris. Lá tinha uma escola muito famosa naquela época. Ela acompanhou o início da arte eurítmica e gostou do processo.
– Então Rudolf Steiner não criou a Arte da Fala?
Não. Podemos dizer que esta arte antiga estava em processo de morte, e ele a ressuscitou. Naquela época a Arte da Fala ainda era praticada oficialmente, principalmente na França. Aqui no Brasil também. Tem um livro sobre a história do Theatro São Pedro, onde aparecem cartazes dos tempos antigos, dos anos vinte, trinta e quarenta. Eu estava folhando o livro com a minha mãe, quando ela falou: - “Olha esta senhora aqui: Berta Singerman, ela era uma declamadora famosa. Ela se apresentava no Theatro São Pedro fazendo declamações e recitações de poemas.“ Minha mãe assistiu a isto nos anos quarenta. Com o tempo esta arte foi se perdendo, pois a humanidade se tornou cada vez mais intelectual. Prendeu-se ao conteúdo somente e perdeu a ligação com a expressão verdadeira.
Goethe enfatiza: “Considere o quê; mais ainda, considere o como.” Uma obra de arte se manifesta pelo fato de que o quê e o como se tornam um. A própria expressão é o conteúdo! O conteúdo sozinho não é nada. É prosa, é cotidiano, não é arte. Esta noção a humanidade perdeu quase por completo. Por isto vivemos hoje numa época basicamente sem arte. Isso é trágico, porque o ser humano não vive sem arte. Sem arte ele desaparece, embrutece, se torna apenas animal racional. Não consegue manter o nível humano – e é bem isso que está acontecendo hoje... Estamos já no túmulo da cultura.
Mas voltando para a poesia. Em 1912 Rudolf Steiner percebeu que o intelectualismo estava tomando conta, e com isto a arte através do som estava se perdendo. Ele chamou a atenção para a execução artística de poesias, para o som das poesias! Não ler poemas, mas escutar poemas. Não pelo conteúdo do poema (o conteúdo acompanha a arte naturalmente), mas pelo som do poema. Isto é artístico. Se você tem oportunidade de ouvir uma pessoa que realmente sabe fazer isto, é impressionante. E muito bonito. Mas é raro hoje em dia. Tem poucos artistas bons nessa área.
Marie Steiner exercia esta Arte da Fala. Ela passou a se dedicar à arte nova, a euritmia. Deixou de atuar profissionalmente e ajudava as jovens euritmistas, conduzia os ensaios. Surgiu o primeiro grupo de palco que trabalhava no centro artístico e científico da Sociedade Antroposófica no Goetheanum, em Dornach na Suíça. Regularmente Rudolf Steiner assistia aos ensaios e dava novas indicações. Assim a euritmia foi evoluindo.
Continuação em 29/08/2005
A euritmia é uma dança criada com base na Antroposofia, uma dança que mostra a relação do ser humano com o cosmos, e ao mesmo tempo é a renovação das danças sagradas. A dança sempre foi isto, mas com a passagem da humanidade pelo materialismo, a dança também ficou materialista. Perdeu a conexão com o todo. E acabou sendo simplesmente a expressão das emoções da pessoa, uma coisa assim separada do todo, só eu e o que eu sinto. Isto não tem nada a ver com o mundo. Então a euritmia dá o passo, a ligação entre o que a pessoa sente e o que o universo é, ou seja, o microcosmo se liga com o macrocosmo. Esta é a intenção da euritmia.
A moça Lory recebeu o primeiro curso. Tem um livro de formato retangular, em alemão, que se chama Entstehung und Entwicklung der Eurythmie, o que quer dizer “Surgimento e Desenvolvimento da Euritmia”. Lá tem as anotações do primeiro curso que Rudolf Steiner deu para ela, as primeiras indicações. Este livro tem em alemão e em inglês se lembro bem. Rudolf Steiner foi dando indicações, por exemplo, olhar obras gregas, observar os movimentos das figuras. Mas não era para imitar esses movimentos, era só para olhar. Outra indicação foi imaginar-se um bardo (que é um músico lá do norte da Escandinávia, dos tempos dos Vikings) movimentando-se contra uma tempestade na praia, tocando a sua lira e fazendo movimentos encarando a tempestade. A idéia era fazer surgir o astral do herói: forte e bem conectado com o chão. Indo contra a força da tempestade, cantando e tocando contra o som da tempestade. Era para Lory praticar isto também.
Isto mostra que a euritmia desde o início tem uma certa polaridade. Porque o grego tem um movimento leve e bonito, aquelas roupas que parecem água fluindo em volta dos corpos. O herói do norte, germânico, viking, é o contrário, o seu astral tem a ver com força, com colocar os pés no chão.
Rudolf Steiner deu também outros exercícios para as moças e depois de meio ano, ele observava e fazia as correções, conforme necessidade.
Em Dornach, na Suíça, surgiu o primeiro grupo de palco. Lá também foi construído, em madeira, o primeiro Goetheanum, um teatro, que era na realidade um verdadeiro templo. Era pura euritmia na escultura, na arquitetura, na força plasmadora do interior e do exterior. Rudolf Steiner explicou que a Antroposofia se manifesta através de pensamentos vivos. É um pensar em ondas, um pensar em metamorfose. Foi Goethe que descobriu a metamorfose das plantas. Rudolf Steiner chamou o prédio de Goetheanum. Esta forma de pensar em ondas, era para se tornar visível em tudo: na pintura, na arquitetura, nas esculturas, em tudo. Também no estilo de falar quando alguém dava uma palestra e na forma de atuar quando se via um Drama de Mistérios. Rudolf Steiner escreveu quatro peças de teatro que se chamam Dramas de Mistérios. A euritmia era o ideal dentro deste invólucro, porque as formas vivas do Goetheanum fluíam enquanto se olhava para o palco, era a mesma energia. Esta idéia na realidade é a continuação da idéia de Richard Wagner que criou o Gesamtkunstwerk. Isto quer dizer “Obra de Arte Total” ou “Obra de Arte Integral”. Ele criou a sua própria casa de ópera em Bayreuth, criou a arquitetura, o palco, o lugar onde a orquestra fica, etc. Para que tudo, o som, a imagem e tudo fosse uma coisa só.
No Goetheanum a euritmia foi germinando. Todo o domingo tinha uma apresentação de euritmia num local que se chamava Die Schreinerei, “A Marcenaria”. Lá Rudolf Steiner dava palestras. Também para os operários que trabalhavam na construção do Goetheanum. Todas pessoas bem simples. E essas palestras são as mais profundas dele, quando ele falava para os trabalhadores, gente que trabalha com as mãos.
Neste âmbito a euritmia germinava. Marie Steiner praticava com estas moças durante a semana. Quando chegava o fim de semana, no sábado, Rudolf Steiner fazia as correções e, no domingo, na apresentação, tinha que tudo estar ajeitado como ele queria. A partir dos anos vinte pessoas mais velhas entraram no grupo. O grupo de palco iniciou suas turnês pela Europa. A intenção era levar a euritmia para o mundo. Nas apresentações o público muitas vezes ficava furioso. Jogava ovos! É interessante que a euritmia nos anos vinte não deixava as pessoas à vontade. Era como naquela apresentação de Nijinsky em Paris, L´après-midi d´un faune, com a música de Debussy. Foi um escândalo! Naquela época o público se comovia muito com apresentações artísticas. A euritmia era recebida desse jeito também. O pessoal ficava muito tocado, comovido, mexido. Ficava indignado porque era uma coisa muito diferente.
— Diferente do balê clássico?
Diferente daquilo que as pessoas estavam acostumadas a ver. Isadora Duncan, por exemplo, dançava de pés descalços. Era um escândalo! O público era basicamente uma burguesia rígida. E este tipo de coisa tocava o seu jeito de ser, tocava esta rigidez. Imagino que era difícil aguentar isso. Mas na realidade, em termos de arte, é um sinal muito bom. Porque a pior coisa para a arte é quando ela deixa as pessoas indiferentes. E quando o pessoal gosta muito é sinal que a coisa não é nova. Quando foram exibidas as primeiras sinfonias de Beethoven, por exemplo, o público fugia! E hoje em dia o que a burguesia mais gosta de ouvir são as sinfonias de Beethoven, mas isto duzentos anos depois! Então pode ser que daqui a cem anos o público vai gostar muito de ver euritmia... Mas vai ter que ser uma euritmia boa. Como foi naqueles anos vinte, parece que eram pessoas com muita expressão. E dizem que Marie Steiner, quando conduzia os ensaios, era muito severa. Exigia dedicação total dos jovens euritmistas.
Então para concluir os anos vinte: em 1925 Rudolf Steiner morreu; no início dos anos vinte ele quase sofreu um atentado quando estava falando sobre política, sobre trimembração social . Depois disto ele deixou de fazer esse trabalho político e começou a dar muitas palestras. De 1920 até 1925 ele trabalhou muito. Nesta época ele deu muitos cursos para médicos, para agricultores, para pastores, etc. Surgiu a Comunidade dos Cristãos, um movimento para a renovação da vida religiosa, a pedido de um grupo de pastores luteranos. Nesta época ele também deu um curso para atores, que é um curso muito interessante. E deu os dois cursos para os euritmistas. Um é o curso da Fala Visível, quinze palestras, o outro é o curso do Canto Visível, oito palestras. Isto tem em forma de livro em alemão, e eu acho em inglês também.
— E o curso para atores?
O curso para atores tem em alemão e em inglês. Estudei este curso quando morei em Chicago. Rudolf Steiner fez excelentes contribuições para o teatro. Mas isto tudo ainda aguarda a ser descoberto. É uma semente muito rica. Eu me entusiasmei! Deu vontade de ser atriz...
Bem, isto é o que a gente tem de literatura sobre euritmia: aquele livro do início, como a euritmia iniciou, em 1912, que eu já mencionei antes, e depois aqueles dois cursos. Isto é basicamente o que encontramos. E depois tem mais um, escrito por uma das primeiras euritmistas, sobre os elementos básicos da euritmia. - Annemarie Dubach-Donath: “Grundelemente der Eurythmie” - “Elementos Básicos da Euritmia”. São basicamente estes quatro. Em alemão e em inglês. E, depois, têm hoje publicações de pesquisas dos atuais euritmistas: Werner Barfod, Sylvia Barth, Eduardo Jenaro e outros.
— E sobre as peças que o Rudolf Steiner escreveu?
Ele escreveu quatro peças de teatro, chamam-se Mysteriendramen, que são “Die Pforte der Einweihung” (O Portal da Iniciação) em 1910; “Die Prüfung der Seele” (A Prova da Alma) em 1911; “Der Hüter der Schwelle” (O Guardião do Limiar) em 1912; “Der Seelen Erwachen” (O Despertar das Almas) em 1913. Mysteriendramen traduzido significa Drama de Mistérios. Este tipo de teatro se fazia na praça, em frente à igreja, como já mencionei antes, quando as representações e as danças foram proibidas dentro da igreja, mais ou menos 800 d.C.. Depois desta época, o teatro, assim como a dança, se tornou profano. Perdeu a ligação com o divino. No tempo dos gregos, por exemplo, o teatro era sagrado, assim como a dança. Rudolf Steiner retoma este tipo de teatro. Ele escreve quatro peças que têm a ver com a iniciação do ser humano. Mostra o ser humano na nossa época, quando começa a se tornar clarividente de novo . Nestas peças a euritmia foi utilizada pela primeira vez, nas primeiras encenações destas peças em Munique, entre 1910 e 1913. A euritmia foi inserida para mostrar o mundo supra-sensorial.
O que estas peças mostram? Vou compará-las com o Fausto de Goethe. O Fausto faz um pacto com o diabo, o Mefisto. Mas o Mefisto, na realidade, não é fisicamente visível. O Mefisto não tem corpo físico. No palco ele é predestinado a ser interpretado por um euritmista. O ator faz o papel do Fausto, caminha pelo palco e fala. Um ser que não tem corpo físico fica mais realista através dos movimentos etéricos da euritmia: parece que está flutuando acima do chão, outra pessoa fala por ele, ele fala através dos gestos... pode imaginar? Então a platéia consegue ver dois níveis: o mundo físico e o mundo etérico (que é o primeiro nível supra-sensorial). Estes níveis aparecem no Fausto e aparecem nos Dramas de Mistérios. Rudolf Steiner mostra como o ser humano é influenciado por forças espirituais em tudo, no seu pensar, nas suas decisões. E mostra que o ser humano hoje em dia precisa acordar para essa realidade. Precisa se dar conta que existem estes seres a sua volta constantemente. E que, dependendo da postura do ser humano, eles conseguem influenciá-lo, agir através dele ou não. Pelo fato de o ser humano ser forte o suficiente para ser dono de sua própria vida, eles não têm poder sobre ele, não podem influenciá-lo. Isto é uma questão muito séria. Pois estas pessoas fortes são raras hoje em dia. E o resultado é o mundo que temos atualmente: uma explosão de corrupção e violência. Esta questão é muito importante. E o primeiro passo para melhorar a nossa qualidade de vida, torná-la humana novamente, é desenvolver consciência sobre estes fatos. Esta realidade é mostrada nestas peças, assim como no Fausto. Goethe considerou o Fausto, assim como a sua Doutrina das Cores, o mais importante que ele escreveu. O Fausto, principalmente a segunda parte, é uma obra visionária, profética. A tarefa do ser humano hoje em dia é adquirir consciência e força. Força para dizer não. Mas isto é uma questão complexa. Para isto servem o estudo e a prática da Antroposofia.
Estas peças são encenadas principalmente no Goetheanum, em Dornach, Suíça. Uma nova montagem está sendo preparada atualmente.
Continuação em 05/09/2005
— Como está a euritmia no mundo hoje?
Nos anos vinte a euritmia se movimentou pela Europa; o grupo de palco de Dornach fez diversas turnês. Rudolf Steiner morreu em 1925. Marie Steiner viveu até 1948 (se lembro bem) e continuou este trabalho. Surgiu a primeira formação de euritmia em Dornach e, logo, o Eurythmeum em Stuttgart. Este já havia sido inaugurado quando Rudolf Steiner ainda era vivo, logo depois da inauguração da primeira escola Waldorf, no mesmo terreno. Tinha uma menina com muito talento para a euritmia na Escola Waldorf. Era Else Klink, que depois se tornou uma grande euritmista. Rudolf Steiner recomendou que ela só assistisse à aula principal, das 8h até 10h, e depois fosse direto para a escola de euritmia. E disse que ela seria muito importante para a euritmia no futuro. E realmente foi. Ela era uma mistura de raças, uma mulata que nasceu na Nova Guiné. Os primeiros sete anos de sua vida passou na Nova Guiné em meio a uma natureza pura e abundante. Por isso ela tinha um capital de forças etéricas muito poderoso. Com sete anos foi levada para Stuttgart na Alemanha, pois o pai dela era alemão. Else Klink foi a grande mestre do Eurythmeum.
Durante o tempo dos nazistas a euritmia foi proibida. A escola Waldorf foi fechada e o Eurythmeum também. Pessoas foram para a prisão. Else Klink escapou da prisão, mas teve que trabalhar na fabricação de armas. Muita gente nesta época era forçada a fazer isso. Depois da guerra o Eurythmeum ressuscitou, e aí se iniciou uma época muito produtiva. Else Klink formou muitos euritmistas e fundou um grupo de palco, que chegou a ser o mais famoso do século XX. O grupo viajou pelo mundo, fez turnês no Japão, na Austrália, nos Estados Unidos, etc., viajou pelo mundo inteiro. Não sei se chegou no Brasil, mas com certeza no hemisfério norte (da América). Era um grupo muito bom no tempo em que ela era a chefe. Inclusive ele foi convidado para se apresentar no teatro oficial de Stuttgart, para fazer euritmia nas produções de óperas.
A euritmia continuou se desenvolvendo também em Dornach, e surgiram duas escolas. A escola de Lea van der Pals e a escola de Elena Zuccoli, que era uma outra figura muito especial, uma mistura de italiano com finlandês. Ela foi uma euritmista fantástica! Eu ainda tive a oportunidade de vê-la com oitenta anos, e fiquei de “queixo caído” quando vi a mobilidade dela ainda com esta idade. Ela se apresentava principalmente no Goetheanum. Outras euritmistas foram para Londres, e surgiu a escola de euritmia lá. Depois para Paris. Marie Clair Cotie era uma euritmista muito boa, em Paris. Alguns euritmistas foram para a Rússia, mas isso é mais recente por causa da cortina de ferro. Na era comunista, espiritualidade era proibida na Rússia. Em Nova Iorque surgiu uma escola muito boa, em Spring Valley, sob a direção de Dorothea Mier, uma excelente euritmista musical (Canto Visível). Outra euritmista muito boa de lá é Bárbara Schneider-Serio . E, assim, várias formações surgiram. Hoje tem uma boa escola de formação na Noruega, sob a orientação de Margrethe Solstad, euritmista muito boa. Na Suécia também tem uma formação. Tinha duas na Dinamarca, mas não sei em que ponto estão hoje. Tem uma formação na África do Sul, ou até duas, se me lembro bem. A euritmia é bem espalhada pelo mundo.
Atualmente têm diversos grupos de palco em vários países. Porém, nos anos noventa a euritmia entrou em crise. Até o fim dos anos oitenta existiam os grandes grupos de palco que tinham a assinatura de alguma euritmista. Por exemplo, Else Klink no Eurythmeum. O grupo era o corpo dela basicamente. No Goetheanum tinha Marie Savitch, uma russa. O grupo do Goetheanum era expressão dela. Na Holanda era o grupo de Werner Barfod, o Nederlands Eurythmie Ensemble, que fez muito sucesso, e tinha a assinatura dele. Esta gente ou morreu ou se retirou do palco para trabalhar com euritmia de outra maneira, e agora a característica é que existem vários grupos pequenos e tudo ficou mais individualizado. O grupo de palco do Goetheanum ainda existe, o Eurythmeum também. Mas o estilo de trabalho ficou diferente, mais cooperativo. Atualmente, desde 2000, Carina Schmid, com quem eu me formei, é a chefe do grupo de palco do Goetheanum. Recentemente, ela fez uma grande produção em conjunto com o Eurythmeum. Mostraram a Sétima Sinfonia de Beethoven e uma Sinfonia de Schostakowitsch. Com isto viajaram pela Europa no ano passado, 2004. Foi um grande sucesso. Infelizmente, não pude ver esta apresentação, quando estive na Europa a trabalho, no início deste ano, 2005. No grande teatro do festival de Salzburg, Grobes Festspielhaus, eles se apresentaram e o público gostou muito. O teatro estava lotado. No momento existe a tendência de fazer grandes obras musicais e viajar com isto pela Europa. Nos Estados Unidos, atualmente, o grupo de palco de Spring Valley está fazendo a Sinfonia de Dvorak, “O Mundo Novo”. Estão em turnê pelos E.U.A . De outro lado, têm muitos grupos pequenos fazendo também experiências com a euritmia. Ela está passando por uma crise de identidade. No trabalho dos grupos pequenos esta crise se manifesta. É uma busca por novas dimensões.
Isto é o que está acontecendo com a euritmia do palco atualmente.
Além disso tem a Euritmia Pedagógica, que faz parte do currículo da escola Waldorf. E o terceiro campo de atuação da euritmia é a euritmia Curativa. Mais um ano de formação, além dos quatro anos básicos, é necessário para se tornar um euritmista curativo, um terapeuta que cura através do movimento. É possível curar doenças graves com a euritmia, câncer por exemplo, o que eu, pessoalmente, acho uma coisa espetacular.
A euritmia Pedagógica tem muito a ver com a Euritmia Artística, a euritmia de palco. Rudolf Steiner disse que a euritmista curativa tem que ser a pessoa mais artista, porque ela tem que ter efetividade, ela tem que ter uma irradiação muito forte para poder curar com os seus movimentos. Depois vem a euritmista pedagógica. Ela tem que ser artista total, tem que dominar completamente a sua arte e ainda trabalhar com outro material artístico, os alunos. Então tem que ser uma pessoa muito capaz. Depois vem o artista de palco que tem que, obviamente, também ser muito bom para ter uma boa irradiação no palco.
Na Euritmia Pedagógica utilizamos a euritmia para desenvolver uma boa conexão com o instrumento de expressão, com o corpo. Na realidade com nossos vários corpos que se desenvolvem, que nascem em épocas diferentes na nossa infância e juventude. O ser humano tem quatro corpos: corpo físico, corpo vital, corpo astral e corpo do eu. Rudolf Steiner apresenta este fato no livrinho “A Educação da Criança Segundo a Ciência Espiritual”, em 1907. Através de vivências que envolvem os quatro elementos, esta realidade pode facilmente ser verificada. No Espaço Vivo trabalhamos neste sentido. Investigamos os quatro corpos através do movimento.
A euritmia oferece movimentos específicos para cada momento na evolução do jovem, para cada ano escolar. O currículo da euritmia acompanha a necessidade da criança, deve dar o que a criança precisa em cada momento. A euritmia oferece alimento anímico através do movimento. Em primeiro lugar ela desenvolve a flexibilidade da alma, o movimento interior. Torna o ser humano rico interiormente, rico em vivências. Na escola Waldorf isso acontece em todas as aulas até mesmo na aula de matemática. Tudo é vivenciado! A criança que estuda na escola Waldorf se torna interiormente rica. E então toda esta riqueza é colocada para fora nas aulas de euritmia e mais tarde na vida do ser humano.
— Durante toda escola Waldorf se pratica Euritmia Pedagógica?
Desde o Jardim de Infância. Na realidade a partir dos três anos de idade, porque até os 3 anos a criança deve ficar em casa, com a mãe e o pai. Isto é o ideal. Mas se ela, com 3 anos, vai para o Jardim de Infância, o Jardim de Infância Waldorf imita a casa, o lar. Além disso existe euritmia para bebês, antes dos 3 anos, mas estes são casos especiais. A criança tem que estar com 2 anos no mínimo para fazer euritmia, porque antes disto ela nem fala ainda. Quando ela já está falando um pouquinho dá para começar. Mas normalmente isto ocorre em casos especiais, quando, por exemplo, são filhos de euritmistas. Uma amiga minha, que estudou euritmia comigo, agora vai começar a fazer euritmia para bebês com sua filha. Ela oferece isto em casa, na sala dela; convida crianças pequenas da vizinhança e faz algumas coisinhas com elas, em 10 minutos no máximo, porque elas não conseguem receber muito mais nesta idade. No Jardim de Infância passa a ser uns 15 minutinhos, depois 20 minutos e mais tarde com os grandes já dá para fazer uma meia hora. Assim a gente vai, passo a passo, e finalmente, a aula é de 50 minutos. Primeiro uma vez por semana, nos primeiros quatro anos, e a partir do quinto ano da escola, passa para duas vezes por semana até o décimo segundo ano. Os alunos chegam a fazer apresentações do mais alto nível artístico. Na Alemanha quem teve uma boa professora ou um bom professor de euritmia desde pequeno, às vezes no colegial é melhor do que aqueles que fazem a formação! Porque quem faz a formação faz só quatro anos, e os alunos Waldorf fazem, no total, mais ou menos 15 anos de euritmia.
A prática regular de euritmia serve para que a pessoa possa desenvolver uma boa relação com o seu corpo, com o seu instrumento. Para que ela, na vida adulta, possa ter uma alma rica saber expressar os seus sentimentos com facilidade e com prazer. A euritmia na escola serve em primeiro lugar para melhorar a qualidade de vida. Quando adulto, o ser humano vai ter sua força de vontade à disposição. Não interessa o que ele vai escolher como profissão. Vai ser uma pessoa efetiva, porque o seu instrumento vai estar aí para lhe servir. O pensar, o sentir e o querer estarão conectados, e assim a vida flui!
Outra coisa que a euritmia faz é preparar a pessoa para o seu desenvolvimento interior. Se um dia ela quiser traçar um caminho de iniciação, por exemplo, se tornar clarividente, se esforçar nesta direção por escolha própria, o seu instrumento estará a disposição, desbloqueado.
A euritmia é algo fantástico! Eu desejo para cada criança, cada jovem receber o alimento anímico da euritmia na escola. Eu não recebi isso. A minha amiga, que citei anteriormente, teve euritmia na escola. Hoje ela é uma euritmista muito boa. Eu cursei uma escola normal, sem euritmia, e mais tarde tive bastante dificuldade na relação com o meu corpo. Tenho talento para as artes, desenvolvido por causa dos meus pais, artistas, mas não recebi nenhuma ajuda para lidar com o meu corpo, e sofri muito na escola (no ginásio), porque tínhamos que ficar sempre sentados. Minha amiga recebeu euritmia na juventude, e quando foi estudar euritmia tudo simplesmente fluía! Eu ficava muito frustrada, porque sentia o meu talento, me apaixonava pela euritmia, queria expressar o que eu sentia, e durante um bom tempo tive bastante dificuldade em fazer isto. Foi necessário muito esforço e dedicação para superar o meu bloqueio pessoal. Mas finalmente consegui!
— Como é a ligação da euritmia com as outras artes?
A euritmia tem ligação com todas as artes: com a arquitetura, com a escultura, com a pintura, com a música, com a arte da fala, com o teatro, com a dança, etc. O que a euritmia faz é conscientizar os processos de criação. O euritmista tem que entender de todas estas artes. Ele deve tocar um ou vários instrumentos, e deve entender de música, das leis da composição. Na formação de euritmia a gente estuda estas matérias. A gente canta e tem aulas de teoria da música e também sobre as formas musicais, a forma de sonata, etc. O euritmista tem que pintar e entender de cores. Ele precisa disto principalmente para escolher a iluminação do palco, para escolher o vestuário, as cores da vestimenta para a apresentação de uma peça. Tem que entender de escultura, porque na fala visível ele é uma escultura móvel. Ele deve estudar os estilos da escultura, e deve entender o que se manifesta através de cada estilo. Para uma pessoa que gosta de arte, a profissão do euritmista é o céu na terra, porque a vida se torna cada vez mais interessante. O euritmista também deve entender de arquitetura e como, através da arquitetura, se manifesta o que o ser humano vivencia em sua evolução. Ele precisa aprender a arte da fala, porque deve dominar bem o falar e vivenciar profundamente a qualidade de cada som. Na formação a gente tem, durante três anos, aulas intensivas de arte da fala, e no fim tem que fazer uma apresentação, declamar uma balada para a comunidade da escola de euritmia. Deve aprender a atuar até certo ponto, fazer teatro, e deve estudar a história do teatro. Deve entender de dança, conhecer os estilos de dança e saber da história da dança, como cada estilo surgiu etc.
— A euritmia é uma arte que trabalha menos com o lado da subjetividade humana? Esta questão das cores, por exemplo, cada cor é sentida (percebida) de forma diferente. Já escutei uma professora de arte falando que cada um sente as cores de forma diferente. A arte contemporânea coloca isto bem claramente, o sentido da obra é construído, também, através do encontro da própria obra com o ser humano. Qual é a sua opinião sobre isso?
Isto é um ponto importante que tem a ver com uma confusão que surgiu mais ou menos há duzentos anos atrás, sobre a questão da subjetividade e da objetividade. Quem mostra o caminho aqui é o cientista-artista Johann Wolfgang von Goethe. Goethe diz que o instrumento mais perfeito para fazer pesquisa cientifica é o próprio ser humano. Só que para fazer isto o ser humano precisa evoluir. Vamos dizer, eu quero explorar as qualidades das cores, por exemplo. Então eu preciso utilizar os meus olhos e em minha alma, preciso verificar o que eu sinto. E neste processo eu posso, e este caminho Goethe mostrou, eu posso purificar minha alma de uma maneira que a cor comece a se manifestar em mim. Neste caso a minha vivência se tornou algo objetivo: a própria cor fala de si em minha alma, e eu entendo o que ela diz. A minha subjetividade se transformou em objetividade. Eu deixei um outro ser, a cor, falar dentro de mim, e me esforcei para entender a sua língua. Isto é um ponto essencial. É a essência da arte verdadeira e da ciência verdadeira.
O cientista comum de hoje simplesmente nega a alma. Ele diz “a alma é subjetiva e pronto”. Então a gente não pode usá-la no processo de pesquisa. A gente tem que deixar a alma do lado de fora. Só que isso é uma ilusão. Assim como eu não posso deixar os meus olhos do lado de fora quando olho através do microscópio, também não posso deixar a minha alma do lado de fora, pois é ela que olha através destes olhos! A única coisa que posso fazer é educar a minha alma a olhar direito, a olhar com objetividade. Este é um ponto em que a ciência atual não é consequente. Ela é inconsequente. E isto virou um dogma: ela simplesmente alega que tudo é subjetivo! Mas não é bem assim. Subjetivo é quando se trata de “gosto ou não gosto”. Se eu digo: “vermelho é a minha cor preferida!”, isto é subjetivo. Quando eu gosto ou não gosto, isto diz algo sobre mim, mas a qualidade do vermelho, não é subjetiva. Por exemplo, se uma pessoa diz assim: “vermelho me acalma. Quando eu quero relaxar eu entro num quarto vermelho, completamente vermelho”, isto apenas mostra que esta pessoa está doente...
É importante esclarecer esta questão. Não é qualquer pessoa que pode ser cientista, não é qualquer pessoa que pode ser artista. É necessário passar por uma purificação de alma. É um processo árduo se tornar artista! Não é simplesmente ser uma pessoa criativa e fazer o que quer. Isto não é ser artista. O artista tem que aprender a trabalhar com o seu material. Para isto precisa primeiro conhecer bem este material. No caso do pintor são as cores e suas relações, no caso do músico os tons e suas relações, no caso do euritmista é o ser humano, a relação microcosmo-macrocosmo. E depois o artista precisa desenvolver a capacidade de fazer exatamente aquilo que ele quer num certo momento. Se um quadro bonito surge por acaso não se trata de arte, isto qualquer pessoa pode fazer. E neste sentido também qualquer coisa é bonita. Com certeza têm muitas coisas bonitas no mundo, mas é importante esclarecer o que é arte. Hoje em dia se perdeu quase por completo o conceito de arte...
Mas um dia isto vai mudar. Estamos agora num processo de transição, passando pelo vale da morte. Depois desta, a vida vai ressuscitar, e com ela, a beleza vai voltar, e a verdade, e tudo que é bom para os seres deste planeta.
Continuação em 13/09/2005
— Margrethe, gostaria que você esclarecesse sobre a questão das “forças zodiacais”? Parece que esta é a base da euritmia. Em que sentido você usa esse termo zodiacal? Você sabe que se falarmos no sentido astrológico, isto não é comprovado cientificamente. Então em que sentido estas forças zodiacais aparecem na euritmia?
A euritmia busca mostrar a conexão do ser humano com o macrocosmo. O ser humano é o microcosmo. A euritmia como arte no palco mostra a relação do microcosmo com o macrocosmo. Com o movimento expressamos a fala, e a fala tem dois elementos básicos: consoantes e vogais. As consoantes são as forças formadoras ou plasmadoras do universo, tanto do microcosmo como do macrocosmo. Elas se agrupam em doze famílias, e através delas as doze forças do zodíaco se manifestam no mundo, criando a realidade. Lembre: “No início era o verbo...” Tudo se criou – e se cria! – através da força do verbo. Verbo em grego se chama: Logos. As vogais (como o nome diz, - vem de vox, do latim, o que quer dizer voz) vêm de dentro. Elas têm a ver com a expressão do ser humano. Elas têm relação com as forças planetárias. As forças formadoras, as consoantes, são como um manto que envolve as coisas, que forma as coisas. E as vogais são aquilo que soa de dentro para fora. Isto é o que faz as palavras. As palavras sempre têm vogais que soam, e tem “com-soantes”, que soam com as vogais.
A euritmia se baseia na Ciência Antroposófica, que é ciência avançada no sentido de ter metodologia própria para pesquisar os reinos acima e abaixo da matéria, para investigar tudo aquilo que a ciência reducionista nega e não pesquisa por falta de metodologia. A ciência reducionista alega que a capacidade do ser humano de entender o universo é limitada . No caso da ciência reducionista isto realmente é assim, pois a metodologia que ela usa é limitada. Porém esta metodologia cientifica pode ser ampliada, desenvolvida além destes limites. Em seu livro A Filosofia da Liberdade, Rudolf Steiner mostra que estes limites são transitórios e podem ser superados conforme a escolha do ser humano. Assim o caminho se abre para uma ciência mais completa e, consequentemente, mais humana. Então, se a ciência reducionista não reconhece o fenômeno das forças zodiacais é porque ela cientificamente ainda não chegou neste nível.
— Margrethe, o que você me diz sobre as tendências que colocam que deveríamos acabar com as metodologias, romper com estes processos metodológicos que usamos atualmente?
Sim, dizem que, para termos algo vivo, temos que desconsiderar a metodologia. Na realidade, voltamos para aquela questão da polaridade entre o objetivo e o subjetivo. Quando a ciência reducionista surgiu foi feita uma escolha. Uma escolha de observar as partes e não o todo. Naquele filme sobre a Doutrina das Cores , de Goethe, fica bem clara a diferença entre Newton e Goethe. Quando Newton olha para as cores, ele só consegue reconhecer a metade. Isto por causa da metodologia que ele usa. Ele olha só para o fenômeno separado. Goethe então pega o fenômeno separado e coloca ele de volta no todo, e diz que a teoria, que surgiu na observação do fenômeno isolado, só é válida se comprovada lá fora na natureza, onde surgem as cores. Porque a vida, a nossa realidade, é um todo. Os fenômenos não acontecem separadamente. Mas até hoje a ciência reducionista não consegue reconhecer isto... O experimento isolado é importante, sem dúvida, porém só tem valor real se comprovado na realidade viva, interligada multifacetada. O processo do pesquisador na realidade é um processo rítmico de separar e depois unir novamente.
Para a arte isto também é importante, porque a arte também precisa de metodologia. Mas o que aconteceu é que a ciência ficou com uma metodologia extremamente rígida e limitada. E a arte então acha que pode desconsiderar a metodologia, e sobra só a subjetividade total. Obviamente só naquelas artes onde isto é possível é claro, porque na música, por exemplo, é impossível. Na música você não pode fingir que está fazendo uma coisa legal, porque a gente percebe se a pessoa sabe tocar ou não, violino, por exemplo. A música é uma arte maravilhosa para educar o ser humano. Na música não é possível sair do real e mentir para si mesmo, porque neste caso o público ouve. Na pintura é possível até pintar um quadro com bosta de elefante e dizer que é muito especial. É mesmo! Na Europa um “pintor” ganhou um prêmio assim. Na música contemporânea é claro que também dá para enganar as pessoas. E o público hoje em dia está tão confuso, que acha basicamente tudo bacana. É como naquele conto de Hans Christian Andersen, “As roupas novas do rei”. - Lembra dessa história? - Só a criança teve a coragem de apontar para o rei e gritar: “mas ele está pelado!”
O Newton queria chegar na objetividade e isto é necessário e muito importante. Porém: como chegar lá? Deixar a alma do lado de fora não dá, porque é impossível. Ela olha através dos meus olhos, e, depois, também sou eu que vou tirar as conclusões sobre o observado. Goethe reconhece que o observador sempre está lá. Porém como é que ele olha? Também não é qualquer pessoa que pode ser cientista. O observador precisa se tornar digno e capaz para a observação objetiva. Goethe foi nesta direção. Ele disse que o instrumento perfeito para fazer pesquisa é o próprio ser humano, mas o ser humano precisa ser afinado como um violino. Porque se o violino está desafinado o som que vai sair dele não vai ser bonito. E assim o ser humano também precisa se afinar. Para se tornar um pesquisador verdadeiro precisa buscar equilíbrio interior, ser uma pessoa que é mestre sobre a sua alma e que sabe colocá-la a serviço da pesquisa. Goethe formula isto mais ou menos assim: “olhar para as coisas como um ser divino, neutro, sem interesse pessoal”. Neste caso o ser humano precisa primeiro investir durante muitos anos, observar as plantas, por exemplo, como Goethe fez. Depois abrir sua alma, dar espaço para a planta se manifestar, para ela lhe contar o seu segredo. Isto é parecido com o processo mostrado naquele filme “O Encantador de Cavalos”. É bem parecido. Goethe diz que a gente só reconhece aquilo que a gente ama.
Um grande artista, naturalmente, sabe disto. Alguém como Pablo Casals, grande violoncelista no século XX , por exemplo. Um artista como ele pratica, pratica, pratica... até saber tocar tão bem, que não precisa mais pensar quando está no palco, porque a coisa flui. Isto é fruto do seu trabalho. Quando o artista está lá, no palco, ele abre a sua alma e deixa a obra acontecer através dele. Isso é uma junção de alta atividade com passividade. É passividade dentro da atividade. Para o pensar lógico, isto parece uma contradição. Mas na realidade não é contradição. É a junção dos opostos. É quando o artista canaliza a obra de arte.
É muito importante o que Newton fez: separar as coisas, tirar o detalhe do contexto. Primeiramente, precisamos fazer exatamente isto: separar os fenômenos para termos clareza. A ciência natural foi até os seus limites. Ela conseguiu reconhecer os fenômenos separados, tudo segmentado, digitalizado, especializado. Aí ela disse que os seus limites valem para todos os tempos. Porém foi ali que ela errou. A Antroposofia como ciência ampliada inicia neste limite, na frente da parede e decide penetrar, avançar. Ela se baseia na ciência natural e vai para frente, não fica parada, avança.
Vou voltar a falar da questão do zodíaco, que você tinha me perguntado. Na ciência convencional temos a astronomia. Tratam-se de cálculos sobre as estrelas, que observamos através do telescópio. A atual astrologia de outro lado, é o resto decadente de uma ciência que foi muito avançada na época dos egípcios. Isto faz um bom tempo, uns 4.000 anos aproximadamente. Hoje em dia temos de um lado a astronomia e de outro a astrologia. As pessoas gostam de ler o horóscopo no jornal. Mas isto é uma coisa banal perto do que já foi e poderia ser. Na realidade, os cálculos são muito importantes, a gente precisa saber qual é o movimento do planeta Vênus no céu em comparação com o movimento de Mercúrio, por exemplo. As qualidades dos planetas se manifestam também através das quantidades, da velocidade, em tudo aquilo que a gente pode contar e medir. (Pesar vai ser um pouco difícil no caso dos planetas! Mas medir e contar é possível) Então o que seria necessário e o que está para nascer (eu sei de pessoas que fazem pesquisas nesta direção) seria a Astrosofia. Seria nem astronomia e nem astrologia, mas seria as duas coisas juntas: Astro-sofia. Seria a sabedoria dos astros. Sabedoria também é quantidade e qualidade juntos. Estas pessoas pegam os cálculos e observam também as qualidades dos astros. Isto é pesquisa nova. A pesquisa das qualidades.
Na euritmia a gente mostra as qualidades dos planetas. É muito bonito ver isto: a qualidade dos 12 signos e o movimento dos planetas. Isto tem a ver com as qualidades de vogais e consoantes. Isso a gente pode ver artisticamente. Com cores e iluminação é belíssimo, quando se trata de um grupo de bons profissionais, de bons euritmistas.
Onde esta sabedoria está sendo usada para a cura, com muito sucesso, é na Euritmia Curativa. Muitas pessoas já foram curadas de doenças graves desta maneira. Isto mostra que a relação das forças formadoras dos astros com o som e com o movimento é real. Se um planeta é responsável pela formação de um órgão corporal, e este órgão enfraqueceu, é sinal que a qualidade do planeta está fraca naquele órgão. Como esta qualidade se manifesta em certo som, e este se manifesta num movimento especifico, o paciente pode ser curado através do movimento e do som. Ambos vão fortificar a atuação do astro. A pessoa vai repetindo, repetindo aquele som, que está fraco na constituição dela, e o euritmista curativo conduz isto. A pessoa, através de sua atividade, ajeita o seu próprio órgão. Ela entra num processo de criação. O órgão é o resultado da qualidade condensada do planeta. Se esta qualidade está fraca, você a intensifica via movimento e assim, com o tempo, ajeita aquele órgão. Isto, com certeza, soa como uma grande viagem para a mentalidade materialista. Porém, muitas pessoas já foram curadas assim. Então é realidade comprovada. E afinal é isso que conta, não é? A seção de medicina no Goetheanum na Suíça tem casos registrados. Quem tiver curiosidade, é só ir atrás.
— E a Euritmia Curativa consegue ter um diálogo com as Universidades?
Isto eu não sei, porque não é da minha área. Mas sei que na Alemanha, e em outros países da Europa, este trabalho é bastante avançado. Numa cidade no centro da Alemanha, em Herdecke, tem uma clínica enorme e lá tem também uma Universidade Antroposófica, que forma médicos. Depois tem outra clinica grande em Stuttgart. Mas é melhor entrar nos sites para saber disto porque não é especificamente a minha área. Como todos os médicos antroposóficos precisam primeiramente estudar medicina convencional e depois fazem a formação especificamente antroposófica, deve ter muitos que estejam ligados à Universidade convencional, imagino eu. Pois eles devem ter relações humanas, e através delas, devem ter vínculos com a Universidade convencional também.
— O Rudolf Steiner chega a escrever sobre a questão da identidade? Como ele vê o ser humano?
Bem, o ponto de partida na concepção de ser humano na Antroposofia é a questão do EU. A qualidade básica do EU é a capacidade de escolher. E baseado na escolha, o EU constrói a sua vida. A sua vida, a sua biografia é uma manifestação de suas escolhas. A gente enxerga quem esta pessoa é através das coisas que ela fez. Isto seria o modelo básico.
— Enxergamos no sentido físico? Enxergamos no corpo?
Bem, é o que a pessoa fez. O Ford, por exemplo, que criou aquelas fábricas de carros. Isto é bem físico. As fábricas estão aí no mundo físico. É a obra dele, ele materializou isto.
— Então é tudo que a pessoa cria?
Sim. Tudo começa com os pensamentos, e os pensamentos se materializam depois, através dos atos. O “Espaço Vivo” (local onde ocorre a entrevista) aqui, um dia foi uma ideia, hoje é concreto. A vida é assim. Quando o EU se manifesta de maneira saudável no mundo terreno, surge uma individualidade no melhor sentido da palavra. Uma pessoa que sabe o que quer, que manda nela mesma, que tem autoconsciência e autoconhecimento no sentido do “ser humano conheça-te a ti mesmo!”, surge uma pessoa que vai em busca de quem o ser humano é. Quem sou eu? Então uma pessoa saudável, com o seu EU à disposição, é uma pessoa forte que consegue fazer escolhas. Como qualidade, ela vai sentir liberdade na vida dela. Liberdade de escolha. Se o EU se mostra fraco, a pessoa não está bem. Então o que surge é o vício.
O fenômeno do vício pode ser compreendido da seguinte maneira: os outros aspectos do ser humano, que deveriam ser só o seu invólucro (corpo físico, corpo vital, corpo astral), em vez de servir ao EU, começam a fazer solicitações próprias, começam a mandar no EU. Vamos olhar um exemplo: fumar cigarro. Quanta gente diz que quer parar de fumar e não consegue. Neste caso o EU mudou de ideia, porque no início o EU quis fumar e o corpo físico disse não. A tosse demonstrou que não era uma boa ideia, o corpo sentia instintivamente que fumar lhe fazia mal. Mas o EU insistiu até que o corpo físico se acostumou com o fumo. Com o tempo, entrou na ginga e agora o corpo vai por si mesmo. Aí o EU muda de ideia e diz: “não, agora eu não quero mais fumar!”. Só que agora o corpo não deixa! E além disso o EU enfraqueceu com o vício. Agora ele também não tem mais muita força para dizer não. Assim é o fenômeno do vício.
O mundo em que vivemos hoje é uma sociedade do vício, conforme diz a médica norte americana Christiane Northrup. Em seu livro “Women´s Bodies, Women´s Wisdom”, ela constata este fato. Como ginecologista, ela investiga a questão das doenças femininas, ela vai atrás das questões: “Por que estas doenças aumentaram tanto no século XX? Que sistema é este que cria todas estas doenças nas mulheres?” Ela chama a nossa sociedade de “The Addictive System”, “O Sistema do Vício”. Eu concordo plenamente. Hoje tem muito mais pessoas viciadas do que pessoas com a sua livre escolha à disposição. A Antroposofia mostra que a pessoa viciada é uma pessoa doente. É quando a ideia ser humano não consegue se realizar. A ideia ser humano se realiza no ser humano livre, que tem liberdade de escolha. Se hoje mais ou menos 80% da humanidade está na situação do vício, então o patológico virou o normal. Nós temos hoje uma sociedade patológica, e esta sociedade começa a chamar a patologia de normal. O que é, na realidade, doente, hoje virou normal. A visão puramente materialista, na realidade, é uma patologia, e hoje esta patologia virou o normal. Isso é compreensível, porque a massa faz um certo efeito. Como são tantas pessoas doentes, de repente, o doente parece normal.
Rudolf Steiner diz no início do século XX que seria de extrema importância que a ciência avançasse, e que o ser humano pudesse entender quem ele realmente é, porque no fim do século XX, por natureza, o ser humano se tornaria um ser fragmentado. Somos seres compostos em três: pensar, sentir e querer . No século XIX, o ser humano ainda era, por natureza, um ser conectado, inteiro. Então a pessoa pensava uma coisa, sentia isto e fazia isto. No fim do século XX, a natureza não proporciona mais, por si, esta saúde para o ser humano. Agora o ser humano deve conquistar esta conexão, esta inteireza por esforço próprio. E quando a pessoa não faz isto, ela fica fragmentada, desconectada no seu pensar, sentir e querer. Surge, por exemplo, uma pessoa que diz que está com frio e tira a roupa... É uma pessoa que faz coisas absurdas, que não combinam. Diz eu te amo e, no mesmo instante, bate na cara da pessoa. Isto são traços patológicos. A Ciência Antroposófica mostra que a natureza está indo em direção ao ser humano fragmentado, porque ele está sendo convidado a fazer algo de si mesmo por esforço próprio. Na realidade, o próprio ser humano é uma obra de arte, e, ao mesmo tempo, o artista desta obra! Legal esta ideia, né?! O ser humano é artista e obra de arte ao mesmo tempo! – conforme o plano divino. Agora, se o ser humano não faz nada para criar sua própria harmonia, tudo fica pior. Se ele nem fica sabendo que esta é a sua tarefa, e que é por isto que ele vive na terra, então a situação dele fica muito desagradável.
É muito triste ver isto, porque agora a natureza já está respondendo. E ela tem que responder, porque o ser humano está, atualmente, completamente fora da realidade. Mas acha que está dentro dela! Então quando esse tipo de coisa ocorre, a natureza tem que se manifestar. Se eu digo, por exemplo, que estou convicta que posso passar pela parede, e começo a marchar em sua direção, a parede vai responder. E aí vou ter que aprender na marra, vou perceber dolorosamente que pensei errado... É isto que está acontecendo no mundo atualmente. Todos estes desastres da natureza são simplesmente as respostas da realidade para o comportamento absurdo, ilusório, do ser humano.
— Gostaria que você falasse um pouco mais sobre as possibilidades de ligação da euritmia com outras artes? Como você vê esta questão?
A euritmia é universal. Como já descrevi antes, tem ligação com todas as outras artes. A relação com outros artistas, o intercâmbio artístico depende do interesse de cada um. Hoje em dia as artes também estão separadas. Os artistas agem como especialistas. Vivenciei isto quando estudava música (violino) lá na Áustria. Os músicos são só músicos, não se interessam pelos atores, por exemplo. E quando eu morei em Chicago e convivi com o pessoal do teatro, observei que, para os atores, só o teatro era interessante. E quando eu estudava pintura, o que interessava aos pintores era a pintura e nada mais. A especialização se manifesta, o fragmentado. Cada um no seu âmbito. E isto vale para as outras profissões também. Ao meu ver, hoje em dia, vale para tudo. Mas o nosso futuro é a transdisciplinaridade, quando as pessoas se encontram novamente e buscam a essência das coisas. Primeiro a interdisciplinaridade, quando as diversas disciplinas se encontram, e depois a transdisciplinaridade, quando as pessoas começam a ter interesse pelo todo, pela essência das coisas. Por exemplo, no momento em que um músico está interessado pelo todo, ele vai poder aprender muita coisa com a euritmia. Esta vivência eu tive com os músicos que trabalhavam comigo, quase sempre pianistas. Quando a gente faz uma peça em conjunto, o euritmista pode aprender muita coisa do músico, assim como o músico pode aprender muita coisa do euritmista. Quando têm atores interessados pela euritmia, e euritmistas interessados pelo teatro, também pode ser muito frutífero. O diretor e ator Scott Fielding (que trabalha com o método Michael Chekhov ) e eu trabalhamos um tempo juntos. Chekhov era um ator muito bom, uma estrela na Rússia, e depois em Hollywood, nos anos 50. Ele foi professor de Yul Brynner, Marilyn Monroe e outros atores americanos. Ele era um grande artista. Aprendi muita coisa importante com o método dele, quando convivi com o Scott em Chicago. Chekhov tinha esta busca pela essência. No momento em que há esta busca pela essência, as pessoas se encontram. Eu sinto o maior prazer em trabalhar com artistas que têm esta abertura, este interesse pela essência das coisas. Só que hoje em dia isto é raro. Porém, estamos no fim da era do materialismo e da especialização. O futuro está na visão realista, que consegue enxergar matéria e espírito em conjunto. O futuro está na transdisciplinaridade, que supera a especialização quando surge um diálogo vivo entre as diversas artes e ciências. Um diálogo, uma busca pela essência. Hoje ainda são poucos que estão neste nível. São os pioneiros.
— Neste sentido, imagino que na área da educação a arte passa a ter um grande valor, porque, se pudéssemos explorar a essência do ser humano através da arte, os alunos teriam muito mais interesse. Qual sua opinião?
Sim, com certeza. Hoje em dia a educação não tem base. O ensino está muito doente. Porque a nossa sociedade está muito doente. Então o ser humano já nasce dentro de um ambiente doente, e a escola ainda intensifica as tendências patológicas da nossa sociedade. O nosso estilo de vida é, quase sempre, unilateral, desequilibrado para o mental. Quem busca saúde neste ambiente doentio, passa a ser um herói, pois precisa de muita força e determinação para ir contra uma corrente doentia. Mesmo assim existe poder no momento em que o ser humano acorda para a sua verdadeira natureza, quando ele finalmente vai em busca de si mesmo. E quando este tipo de gente se junta e começa a buscar em conjunto, a realidade se manifesta. E a realidade é que o mundo é permeado pelo espírito. Têm muitos seres (anjos e seres humanos desencarnados) dispostos a nos ajudar. É um momento importante na evolução da humanidade. Será que o ser humano consegue superar a ilusão do materialismo e consegue reconectar-se com a realidade? Estes seres ficam felizes quando percebem pessoas que estão em busca da verdade. Eles inspiram o trabalho dos pioneiros.
— Como vem sendo o trabalho no Espaço Vivo?
Bem, o meu ponto de partida é que sou cosmopolita. Na realidade, não tenho pátria, sou estrangeira em todo lugar que vou. Então vim para o Brasil porque nasci aqui e queria vivenciar a vida brasileira, depois de ter vivido em vários países da Europa e nos E.U.A.
— Neste sentido tu tens uma identidade multifacetada?
Sim, como cosmopolita, sou multifacetada! E quando o EU é forte, junta todas as facetas. Aí é fantástico viver. Em cada momento, pode puxar aquela qualidade que precisa. Adaptar-se facilmente nos lugares, mas nunca pertence 100% ao lugar. Um agricultor, por exemplo, que nasce naquela terra e planta arroz a vida inteira em cima daquele pedaço de terra, realmente pertence àquele lugar, tem fortes raízes ali, é o oposto de mim. Aliás, tenho um amigo que é assim, e gosto muito dele por que somos tão diferentes, uma grande polaridade. Ele é um agricultor e poeta, uma pessoa sensível, que planta o melhor arroz que eu já comi. Eu também tenho raízes, porém no planeta como um todo.
Eu vim para cá porque queria saber como que era a vida no Brasil. Sempre observei que o brasileiro tem um grande talento para o movimento e para a expressão. E sempre me perguntei: porque será que a euritmia nasceu justamente na Alemanha? Num povo que é tão travado em termos de expressão corporal. Então eu decidi aprender a euritmia na Alemanha, e depois no momento certo, voltar para o Brasil para trabalhar com os brasileiros, e também para desenvolver mais a minha própria faceta brasileira. Neste sentido é maravilhoso trabalhar com os brasileiros porque eles realmente são muito vivos. Gostam de se mexer e de se expressar, uma coisa natural do povo. Por outro lado, infelizmente, o povo brasileiro também tem um grande problema, que é o seu complexo de inferioridade. O brasileiro acha que no Brasil tudo é ruim e lá fora tudo é bom. Isto é uma grande ilusão, e essa afirmação negativa do povo impede o desenvolvimento de seus talentos. Isto me incomoda, e o meu trabalho visa também ajudar na superação deste complexo de inferioridade. De outro lado, o brasileiro é muito aberto para assimilar novidades que vêm de fora, porém, infelizmente, sem muita capacidade de discernir. Então, já assimilou muita coisa ruim. O materialismo radical, por exemplo, o capitalismo selvagem, o estilo de vida puramente mental, etc., só para dar alguns exemplos. Têm pessoas muito mentais e endurecidas aqui, e eu percebo isso como algo trágico, porque, na realidade o brasileiro não é assim. Isto vai contra a natureza do brasileiro. No mais, a força de vontade do brasileiro não é muito forte. Isto não vem de fora, isto é bem brasileiro! O forte do brasileiro é o sentir, as forças do coração, não o agir, a vontade. Já vivenciei muitas pessoas se entusiasmando pela euritmia, mas depois não conseguem seguir. Porém, o trabalho com a euritmia só faz efeito com a regularidade. Neste sentido, o trabalho no Espaço Vivo desafia as capacidades dos brasileiros.
No Espaço Vivo as aulas já acontecem desde 2001, e as pessoas certas vêm chegando. É também uma questão de ser o momento certo para a pessoa. Atualmente o trabalho está se consolidando, o que me deixa muito feliz. Sinto que estou crescendo como profissional, e a minha euritmia se modificou bastante desde que vim para o Brasil. Ela ficou mais viva, mais concreta, mais gostosa. O Brasil é um país gostoso! A minha ideia é fazer uma escola de artes onde tenha também uma formação de euritmia. A ideia inicial é poder servir as pessoas, aquelas que querem superar o desequilíbrio atual. Aqui há uma possibilidade para isto. Fazer isto em primeiro lugar: melhorar a qualidade de vida das pessoas, daquelas que querem se livrar do estresse. Estou feliz que atualmente já têm pessoas que querem isto, e então um time está se formando. Além disso sinto a minha tarefa de formar pessoas. Claro, porque não vou estar aqui eternamente, então é preciso ter outras pessoas para continuar.
Na Alemanha eu também fazia trabalho de palco, coisa que eu adoro fazer. Nos últimos anos não fiz mais, por questões de saúde principalmente. Até cheguei a conceber um trabalho solo com poesias do Mário Quintana e músicas do Villa Lobos. Cheguei até a fazer alguns ensaios em 2000 com o Marcos Bonilla, que toca violão. Mas não consegui seguir naquela época, por causa de problemas de saúde. Mas aquele programa está lá esperando. Criei ele, fiz a composição. E aí, quem sabe, um dia vai ser possível fazer um pouco de euritmia de palco aqui em Porto Alegre...
— Margrethe, você pode falar um pouco sobre o curso intensivo de preparação para a formação que fizemos no Espaço Vivo no final de 2003?
Sim. Naquela época tínhamos a ideia de entrar na formação, no modelo que está sendo criado em São Paulo. É um modelo que respira, no sentido que várias pessoas de diversas partes do Brasil e da América Latina vão para São Paulo, quatro vezes por ano, se encontram lá, para receber aulas de euritmia e depois voltam para as suas cidades para praticar com os euritmistas de cada cidade. Então a gente queria entrar neste modelo em 2004. Em 2003 começamos em outubro. Eu disse: “vamos fazer um intensivo para vocês sentirem o efeito que a euritmia faz no corpo, como ela traz leveza e transforma o corpo”. Para vocês poderem sentir: “bem isto é realmente algo de que eu gosto, algo que quero exercer como profissão no futuro”. Foi aí que eu bolei algo básico já para a formação. Fizemos principalmente exercícios com os bastões de cobre, o que serve para formar o instrumento, o corpo vivo, permeado de sentimento. E depois fizemos a aliteração, aquela poesia lá do norte da Europa que traz força, traz uma ligação forte com o chão, com a terra. Foi um trabalho muito gostoso, não foi? Que culminou numa pequena apresentação. Vocês mostraram muito bem o que vocês aprenderam nestes três meses. Foi uma apresentaçãozinha bem assim como se faz em escola de formação de euritmia. Na formação de euritmia, pelo menos na minha, a gente trabalhava em trimestres, não em semestres. No fim de cada trimestre, tinha uma apresentação de tudo que a gente aprendeu. Lá era no Natal, na Páscoa e no verão. Fizemos isso aqui assim, bonitinho, em miniatura. E depois tivemos que fazer uma pausa por causa de minha operação. Este ano (2005) estou mais concentrada na questão do autoconhecimento vivo, oferecendo euritmia para as pessoas que querem trabalhar no sentido do “ser humano, conheça-te a ti mesmo”. Fazer isto através do movimento é fascinante e gostoso ao mesmo tempo. Disto está nascendo um curso básico de Antroposofia via movimento. Posso oferecer isto para pessoas que querem simplesmente melhorar a sua qualidade de vida, sem visar nenhuma profissão em especial. E depois, ou paralelamente, talvez até já no ano que vem, dê para iniciar uma formação de euritmia. Vamos ver...
O Espaço Vivo é, em outras palavras, uma academia diferente, com musculação para corpo, alma e espírito. A alma fica no meio, entre corpo e espírito. Acaba sendo uma musculação integral. Para baixo, em direção ao corpo, é o movimento. No meio, na alma, o sentimento respira. E para cima é a consciência, o pensar, sempre presentes. Este trabalho faz a ligação entre pensar, sentir e querer. Então, na realidade, tudo que se faz aqui é terapia. Isto as pessoas sentem logo. E quem gosta, fica, e diz que sua qualidade de vida melhora de um jeito bem simples.